Como tu escreves Lídia, isso é a ética

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Há dias tive o privilégio de apresentar, em Portimão, o último romance de Lídia Jorge. Aqui deixo um excerto do texto que escrevi e li nessa ocasião. A versão completa pode ser lida em http://oquecaidosdias.wordpress.com/

Na apresentação de Combateremos a sombra, na Casa Fernando Pessoa, Lídia Jorge começou por evocar Lilith, esse filme perturbante, esquecido, de Robert Rossen.  Porquê este filme? Talvez porque, também em Lilith, as personagens interpretadas por Warren Beatty e Jean Seberg procurem viver contra o seu tempo. Talvez porque, também aí, os territórios do onírico nos sejam abertos por um «decrifrador de histórias», um enfermeiro psiquiátrico. Ou talvez, sobretudo, porque também Rossen era um homem de causas. Alguém que tomava posição. Como Lídia Jorge. E este romance singular, sobre um tempo preciso, a passagem do milénio, e sobre um espaço delimitado, o Portugal que se arrasta em direcção ao tempo seguinte, é também um romance de causas que vem actualizar o próprio debate em torno do posicionamento da literatura. Um romance com um fundo ético que dá voz àquilo que muitos calam. Lídia Jorge ousa abrir a cortina para mostrar o que se esconde «na sombra» – o que está a paralisar o país. E o que vemos é um país escondido. E um país com medo. Com medo de existir, como num outro registo, ensaístico, já havia descortinado José Gil. «Um país fantasmal» enredado numa teia pantanosa de mesquinhez, de mentira, de toda a espécie de tráficos que ninguém quer ver. A propósito do perigo que correm aqueles que neste livro tomam posição, talvez, Foucault, contrariando o optimismo de Rorty, dissesse: «Cuidado, tudo é perigoso, mas não ao igualmente nem ao mesmo tempo». Um livro político, então? Nem tanto. Lídia Jorge prefere-o como «uma ficção com um assomo político», obedecendo a um impulso de melancolia, mas também de raiva contra este «processo de revisão cíclica de marcar passo». A literatura como ética da responsabilidade e da convicção, que vale como juízo, sobretudo, se tiver imaginação suficiente para responder a essa ética.  E este livro tem essa imaginação. Lídia Jorge acredita na possibilidade da mudança, por isso, assume-se como testemunha, com vontade de ser cronista do tempo que passa, recolhendo a matéria impura de que se veste a sua escrita. «Eu prefiro que a escrita seja um vestido», disse. Um vestido que veste a realidade tanto «com o que as suas páginas contém – isto é, as suas metáforas, as figuras, as vozes, os diálogos – como nas páginas que faltam, (…) o espaço em branco que se segue à última página, que continuamos a ler cem anos depois». E também com o que está nas linhas invisíveis que atravessam essas páginas. Lídia Jorge é uma escritora e uma mulher de acção. Neste romance age através do herói romanesco, o psicanalista Osvaldo Campos, colocando-se atrás do seu ombro, acompanhando-o num longo travelling, pedindo emprestada a voz que ele, por razões deontológicas, tem de silenciar. «Apaixonei-me por este funâmbulo, este trapezista sem fato e sem rede. Osvaldo Campos é um homem justo (…), o meu Dom Quixote de estimação, com quem ando há muito tempo a conviver». E Lídia, na vida age intervindo civicamente, empenhando-se em causas, perseguindo novas linhas de fuga para atravessar a sombra. Dando-se como aparecida. Por isso, também, este livro, agora. Um olhar lúcido sobre a consternação do mundo que aí está, «um mundo tão cheio de falsas representações, tão fútil, onde tudo se desumaniza e que inclusive a própria História se desvanece», como escreveu esse outro grande cronista do nosso tempo, o escritor alemão, W. G.. Sebald, em Os Anéis de Saturno. É, então, também, um livro contra o desvanecimento da História, sobretudo da História que vem e que é preciso começar a construir no presente. Não se pense que – embora este seja livro com uma intencionalidade que não se fica pela página lida, mas antes nos interpela e desafia a acompanhar a autora nessa empresa de combater a sombra, enquanto, nós também, testemunhas do que no romance nos é contado, e sobretudo como testemunhas que a autora pretende actuantes no mundo «tão falso» que aí está – o romance adopta o tom militante. Não, em Combateremos a sombra não se vislumbra qualquer pedagogia política voluntarista da literatura. Não, este livro que recusa a escrita sobre o nada e o ensimesmamento literário, este livro que se situa naquela zona em que o literário confina com o referencial, vai por outro caminho «recortando o espaço do sensível e de redistribuição das relações entre a actividade e a passividade, o singular e o comum, a aparência e a realidade que são os espaços-tempos da página lida» – como dizia há dias o filósofo francês Jacques Rancière, numa conferência em Serralves, sobre as relações entre a política e a literatura, suscitando, por aí sim, uma nova forma de subjectivação política capaz de dar trama à vida de todos os dias. Esse é que verdadeiramente o tal assomo político de que fala Lídia Jorge e que nos compete decifrar.

Decifremos, então, o romance, procurando, contudo, não chamar para aqui quaisquer chaves ditas hermenêuticas. O caminho que aqui proponho é tão só o da minha da recepção particular. Naturalmente, recepção literária. E é com Lídia que caminho.[continua]